Este é o tema do artigo do sociólogo Boaventura de Sousa Santos no site Carta Maior, no dia 12 de dezembro. Boaventura discute as consequências do vazamente de informações que a Casa Branca conidera sigolosas, divulgadas pela ONG Wikileaks.
WikiLeaks é uma organização transnacional sem fins lucrativos, sediada na Suécia que publica, em seu site, posts de fontes anônimas, documentos, fotos e informações confidenciais, vazadas de governos ou empresas, sobre assuntos sensíveis.
A seguir reproduzo o texto do professor Boaventura de Sousa Santos.
A divulgação de centenas de milhares de documentos confidenciais,
diplomáticos e militares, pela Wikileaks acrescenta uma nova dimensão ao
aprofundamento contraditório da globalização. A revelação, num curto período,
não só de documentação que se sabia existir mas a que durante muito tempo foi
negado o acesso público por parte de quem a detinha, como também de documentação
que ninguém sonhava existir, dramatiza os efeitos da revolução das tecnologias
de informação (RTI) e obriga a repensar a natureza dos poderes globais que nos
(des)governam e as resistências que os podem desafiar. O questionamento deve ser
tão profundo que incluirá a própria Wikileaks: é que nem tudo é transparente na
orgia de transparência que a Wikileaks nos oferece.
A revelação é tão
impressionante pela tecnologia como pelo conteúdo. A título de exemplo, ouvimos
horrorizados este diálogo – Good shooting. Thank you – enquanto caem por
terra jornalistas da Reuters e crianças a caminho do colégio, ou seja, enquanto
se cometem crimes contra a humanidade. Ficamos a saber que o Irã é
consensualmente uma ameaça nuclear para os seus vizinhos e que, portanto, está
apenas por decidir quem vai atacar primeiro, se os EUA ou Israel. Que a grande
multinacional famacêutica, Pfizer, com a conivência da embaixada dos EUA na
Nigéria, procurou fazer chantagem com o Procurador-Geral deste país para evitar
pagar indemnizações pelo uso experimental indevido de drogas que mataram
crianças. Que os EUA fizeram pressões ilegítimas sobre países pobres para os
obrigar a assinar a declaração não oficial da Conferência da Mudança Climática
de Dezembro passado em Copenhaga, de modo a poderem continuar a dominar o mundo
com base na poluição causada pela economia do petróleo barato. Que Moçambique
não é um Estado-narco totalmente corrupto mas pode correr o risco de o vir a
ser. Que no “plano de pacificação das favelas” do Rio de Janeiro se está a
aplicar a doutrina da contra-insurgência desenhada pelos EUA para o Iraque e
Afeganistão, ou seja, que se estão a usar contra um “inimigo interno” as
tácticas usadas contra um “inimigo externo”. Que o irmão do “salvador” do
Afeganistão, Hamid Karzai, é um importante traficante de ópio. Etc., etc, num
quarto de milhão de documentos.
Irá o mundo mudar depois destas
revelações? A questão é saber qual das globalizações em confronto—a globalização
hegemônica do capitalismo ou a globalização contra-hegemônica dos movimentos
sociais em luta por um outro mundo possível—irá beneficiar mais com as fugas de
informação. É previsivel que o poder imperial dos EUA aprenda mais rapidamente
as lições da Wikileaks que os movimentos e partidos que se lhe opõem em
diferentes partes do mundo. Está já em marcha uma nova onda de direito penal
imperial, leis “anti-terroristas” para tentar dissuadir os diferentes “piratas”
informáticos (hackers), bem como novas técnicas para tornar o poder wikiseguro.
Mas, à primeira vista, a Wikileaks tem maior potencial para favorecer as forças
democráticas e anti-capitalistas. Para que esse potencial se concretize são
necessárias duas condições: processar o novo conhecimento adequadamente e
transformá-lo em novas razões para mobilização.
Quanto à primeira condição, já sabíamos que os poderes políticos e econômicos globais mentem quando fazem apelos aos direitos humanos e à democracia, pois que o seu objectivo exclusivo é consolidar o domínio que têm sobre as nossas vidas, não hesitando em usar, para isso, os métodos fascistas mais violentos. Tudo está a ser comprovado, e muito para além do que os mais avisados poderiam admitir. O maior conhecimento cria exigências novas de análise e de divulgação. Em primeiro lugar, é necessário dar a conhecer a distância que existe entre a autenticidade dos documentos e veracidade do que afirmam. Por exemplo, que o Irã seja uma ameaça nuclear só é “verdade” para os maus diplomatas que, ao contrário dos bons, informam os seus governos sobre o que estes gostam de ouvir e não sobre a realidade dos fatos. Do mesmo modo, que a táctica norte-americana da contra-insurgência esteja a ser usada nas favelas é opinião do Consulado Geral dos EUA no Rio. Compete aos cidadãos interpelar o governo nacional, estadual e municipal sobre a veracidade desta opinião. Tal como compete aos tribunais moçambicanos averiguar a alegada corrupção no país. O importante é sabermos divulgar que muitas das decisões de que pode resultar a morte de milhares de pessoas e o sofrimento de milhões são tomadas com base em mentiras e criar a revolta organizada contra tal estado de coisas.
Ainda no domínio do processamento do conhecimento, será cada vez mais crucial fazermos o que chamo uma sociologia das ausências: o que não é divulgado quando aparentemente tudo é divulgado. Por exemplo, resulta muito estranho que Israel, um dos países que mais poderia temer as revelações devido às atrocidades que tem cometido contra o povo palestiniano, esteja tão ausente dos documentos confidenciais. Há a suspeita fundada de que foram eliminados por acordo entre Israel e Julian Assange. Isto significa que vamos precisar de uma Wikileaks alternativa ainda mais transparente. Talvez já esteja em curso a sua criação.
A segunda condição (novas razões e motivações para a mobilização) é ainda mais exigente. Será necessário establecer uma articulação orgânica entre o fenómeno Wikileaks e os movimentos e partidos de esquerda até agora pouco inclinados a explorar as novas possibilidades criadas pela RTI. Essa articulação vai criar a maior disponibilidade para que seja revelada informação que particularmente interessa às forças democráticas anti-capitalistas. Por outro lado, será necessário que essa articulação seja feita com o Foro Social Mundial (FSM) e com os media alternativos que o integram. Curiosamente, o FSM foi a primeira novidade emancipatória da primeira década do século e a Wikileaks, se for aproveitada, pode ser a primeira novidade da segunda década. Para que a articulação se realize é necessária muita reflexão inter-movimentos que permita identificar os desígnios mais insidiosos e agressivos do imperialismo e do fascismo social globalizado, bem como as suas insuspeitadas debilidades a nível nacional, regional e global. É preciso criar uma nova energia mobilizadora a partir da verificação aparentemente contraditória de que o poder capitalista global é simultaneamente mais esmagador do que pensamos e mais frágil do que o que podemos deduzir linearmente da sua força. O FSM, que se reune em Fevereiro próximo em Dakar, está precisar de renovar-se e fortalecer-se, e esta pode ser uma via para que tal ocorra.
Quanto à primeira condição, já sabíamos que os poderes políticos e econômicos globais mentem quando fazem apelos aos direitos humanos e à democracia, pois que o seu objectivo exclusivo é consolidar o domínio que têm sobre as nossas vidas, não hesitando em usar, para isso, os métodos fascistas mais violentos. Tudo está a ser comprovado, e muito para além do que os mais avisados poderiam admitir. O maior conhecimento cria exigências novas de análise e de divulgação. Em primeiro lugar, é necessário dar a conhecer a distância que existe entre a autenticidade dos documentos e veracidade do que afirmam. Por exemplo, que o Irã seja uma ameaça nuclear só é “verdade” para os maus diplomatas que, ao contrário dos bons, informam os seus governos sobre o que estes gostam de ouvir e não sobre a realidade dos fatos. Do mesmo modo, que a táctica norte-americana da contra-insurgência esteja a ser usada nas favelas é opinião do Consulado Geral dos EUA no Rio. Compete aos cidadãos interpelar o governo nacional, estadual e municipal sobre a veracidade desta opinião. Tal como compete aos tribunais moçambicanos averiguar a alegada corrupção no país. O importante é sabermos divulgar que muitas das decisões de que pode resultar a morte de milhares de pessoas e o sofrimento de milhões são tomadas com base em mentiras e criar a revolta organizada contra tal estado de coisas.
Ainda no domínio do processamento do conhecimento, será cada vez mais crucial fazermos o que chamo uma sociologia das ausências: o que não é divulgado quando aparentemente tudo é divulgado. Por exemplo, resulta muito estranho que Israel, um dos países que mais poderia temer as revelações devido às atrocidades que tem cometido contra o povo palestiniano, esteja tão ausente dos documentos confidenciais. Há a suspeita fundada de que foram eliminados por acordo entre Israel e Julian Assange. Isto significa que vamos precisar de uma Wikileaks alternativa ainda mais transparente. Talvez já esteja em curso a sua criação.
A segunda condição (novas razões e motivações para a mobilização) é ainda mais exigente. Será necessário establecer uma articulação orgânica entre o fenómeno Wikileaks e os movimentos e partidos de esquerda até agora pouco inclinados a explorar as novas possibilidades criadas pela RTI. Essa articulação vai criar a maior disponibilidade para que seja revelada informação que particularmente interessa às forças democráticas anti-capitalistas. Por outro lado, será necessário que essa articulação seja feita com o Foro Social Mundial (FSM) e com os media alternativos que o integram. Curiosamente, o FSM foi a primeira novidade emancipatória da primeira década do século e a Wikileaks, se for aproveitada, pode ser a primeira novidade da segunda década. Para que a articulação se realize é necessária muita reflexão inter-movimentos que permita identificar os desígnios mais insidiosos e agressivos do imperialismo e do fascismo social globalizado, bem como as suas insuspeitadas debilidades a nível nacional, regional e global. É preciso criar uma nova energia mobilizadora a partir da verificação aparentemente contraditória de que o poder capitalista global é simultaneamente mais esmagador do que pensamos e mais frágil do que o que podemos deduzir linearmente da sua força. O FSM, que se reune em Fevereiro próximo em Dakar, está precisar de renovar-se e fortalecer-se, e esta pode ser uma via para que tal ocorra.
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